"Faz de conta que sou tratada igualmente como todas as pessoas. Faz de conta que o restaurante que eu frequento me respeita como mereço. Faz de conta que a sociedade me encara sem preconceito. Faz de conta até quando?" Essas palavras estampavam folhetos distribuídos e lidos amiúde no Ferros Bar na noite de 19 de agosto de 1983.
Naquela gelada sexta-feira, o estabelecimento fincado entre cantinas italianas na rua Martinho Prado, no centro de São Paulo, era palco de um levante protagonizado por lésbicas, as mais assíduas frequentadoras noturnas do local.
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Centelha para o movimento partiu da administração do bar. Dias antes da revolta, fora proibida agressivamente a circulação, em suas dependências, do "ChanacomChana", periódico independente produzido por organizações LGBTQIA+. Contrariadas, mulheres decidiram tomar o local. Convocaram gays, feministas e políticos progressistas.
A investida ocorreu às 22h15. Repórteres empilhavam-se para registrar o momento. Pairava mescla de nervosismo e euforia. À frente iam magnificentes Rosely Roth, Miriam Martinho, Marisa Fernandes e Alice Oliveira, pioneiras do movimento lésbico brasileiro.
Houve tentativa de resistência. Um porteiro segurava a porta. Um ser corajoso roubou o acessório, arremessando-o, e enquanto ele partia ofegante atrás da peça o bar foi tomado.
Alice, 61, retórica sobrenatural e gargalhada contagiante, recorda-se do levante e do contexto a precedê-lo. Fundadora do Somos, primeira organização pela diversidade sexual do Brasil, conta que ia costumeiramente ao Ferro's. Lá, afirma, tomou prazenteiros cafezinhos e ainda mais deliciosos porres.
"Durante o dia, ali funcionava um pacato restaurante familiar. À noite, era transformado em linda carruagem", relata a hoje moradora de Fortaleza, no Ceará. O bar era referência para lésbicas de dentro e fora do país. Todas sabiam se tratar de um local de encontro.
Primaveras antes, o imóvel abrigara jornalistas, literatos e prostitutas. Depois, homossexuais masculinos. "Nosso dinheiro era adorado pelo dono, mas não o que éramos. E somos", diz a militante.
Quando o Grupo de Ação Lésbica Feminista passou a comercializar o folhetim "ChanacomChana" pelas vias paulistanas, em meados de julho de 1983, o Ferro's foi destino óbvio. Mas não houve tempo para a publicação alcançar as dezenas de clientes e as mulheres foram enxotadas.
Juraram revanche. Como ousavam proibir um veículo dirigido às lésbicas num espaço por elas sustentado? "Por isso, foi organizado um mini Stonewall [bar cenário de protestos em 1969, nos Estados Unidos, a ensejarem o movimento LGBT+] ", conta Alice.
No início da madrugada do dia 20 de agosto, tudo estava resolvido. O proprietário cedeu, e o triunfo foi celebrado com radiante beijaço. Década depois, a locanda estava acabada.
Aquela foi a primeira manifestação pública encabeçada por lésbicas no Brasil, afirma a historiadora Julia Kumpera, 29. Ela é autoridade ao tratar do movimento identitário. "O levante do Ferro's marca o debate sobre a liberdade sexual em um país passando por sua redemocratização", diz.
Marisa Fernandes, 70, concorda. Exemplo na articulação homofeminina, fincou seu estandarte naquele 19 de agosto. Habitando hoje o município serrano de Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro, a mulher de longos cabelos grisalhos está afastada da militância para cuidar da saúde, mas anima-se ao rememorar seus esplendorosos momentos.
"Um dos objetivos da ditadura era manter o controle sobre os corpos e os desejos das mulheres e da população de gays, lésbicas, travestis, bissexuais e transexuais. Assim, impedindo que se organizassem trazendo à luz suas dificuldades e reivindicações de direitos", relata.
Os militares eram violentos e moralistas. Bares lésbicos da cidade de São Paulo vivenciavam devassas policiais cotidianamente.
Era rasto da célebre "Operação Sapatão", desenrolada em 15 de novembro de 1980. Naquela noite, a Polícia Militar, então comandada pelo delegado José Wilson Richetti, foi às ruas com única missão: prender o maior número possível de "pecadoras".
A inquisição circulou por tabernas da Martinho Prado. Quase 200 mulheres foram aglutinadas em uma cela de maneira animalesca e tiveram de desembolsar boa quantia pela liberação.
CINEMA, MEMÓRIA E FUTURO
O levante do Ferro's Bar virou filme neste ano. Um curta. Produzido pelo Cine Sapatão, a obra é descrita como fusão de militância e audiovisual focada no protagonismo sapatônico. A partir dos relatos de frequentadoras do endereço, "Ferro's Bar" pincela o alvorecer do movimento lésbico brasileiro.
Para Nayla Guerra, 25, uma das diretoras, o lançamento foi transformador. Para ela, embora o enredo seja desconhecido por grande parte dos brasileiros, é crucial à memória do país.
"Enquanto exibimos a obra em várias cidades, pessoas dizem existir bar com história similar próximo a suas residências", declara. "Imagine quantos pontos de forte resistência desconhecidos temos pelo país. É crucial darmos holofote a tais eventos."
Alice Oliveira é uma das entrevistadas na obra. Emocionou-se. Durante entrevista à Folha, desabafa estar contente por haver uma nova geração exaltando o passado e construindo o futuro das lésbicas. "Doei minha vida para a militância. Sigo firme, porém aliviada por dividir protagonismo."
Desprezando recomendações contidas no relatório da Comissão da Verdade, o Ferros jamais foi transformado em espaço de memória. A data de sua invasão, entretanto, é celebrada nacionalmente como Dia do Orgulho Lésbico.
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