A paternidade não acontece somente na geração de uma nova vida, mas em toda formação desse outro ser humano. A cada fase da criança, há uma nova oportunidade de o pai se reinventar enquanto tutor e melhorar como ser humano. Ou seja, a paternidade é mais que gerar um filho, é deixar um legado.
Maynara Sant’ana, 31 anos, segue o legado do pai, Guilherme Sant’ana, ao ladinho dele, trabalhando na loja e olaria que leva o nome da Família Sant’ana, em Icoaraci. E ela é só orgulho do paizão, a pessoa que mais admira e a quem sempre observou.
“Tenho lembranças do meu pai de quando eu era mais jovem, dele dando entrevistas, falando sobre a cerâmica. Para mim sempre foi muito inspirador, porque acho que admiração tem um pouco disso, que é você sentir que aquela pessoa é apaixonada por aquilo que faz. E o papai sempre demonstrou muito amor pelo ofício dele”, diz ela, que nunca se imaginou antes trabalhando com o pai, mas hoje diz que é um momento de reconectar.
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“É poder estar trabalhando com a pessoa que mais admiro na vida e no lugar mais confortável do mundo, que é do lado da família, pai, mãe, marido, e sabendo que todas aquelas pessoas têm um papel fundamental dentro do empreendimento, todas são muito boas. Não é o fato de apenas ser a sua família, é porque é a sua família fazendo aquilo que gosta, dando o seu melhor”, acrescenta.
A possibilidade de manter as memórias dos ancestrais vivas é uma das coisas mais importantes para ela nesse trabalho familiar, onde cada um assume uma função. Ao lado de Guilherme, ela diz ter aprendizado constante.
“Quem tem oportunidade de conhecer o meu pai, consegue perceber que ele é uma pessoa extremamente calma, sábia. Meu pai é muito sereno, lúdico, tem muita verdade, muita coesão naquilo que fala. Então, aprendo muito com ele sobre os processos, sobre tempo, a cerâmica dá essa visão para gente. Quando tu trabalhas com cerâmica, percebe que não é no nosso tempo, é no tempo dela, se tentar acelerar um pouquinho o processo, a cerâmica entorta, vai quebrar dentro do forno. É sobre ter essa calma, essa serenidade para ver a vida, e isso eu aprendo demais com o papai”, conta ela, que trabalha a comunicação no negócio da família e levou a Família Sant’ana, tradição herdada de sua avó, para o mundo das redes sociais.
“Uma coisa que faz muita diferença dentro da internet é você comunicar a sua verdade”, diz. “Boto muita fé nos caminhos da cerâmica da Família Sant’ana, que é muito fincada na importância desse território amazônico, periférico, com sabedoria ancestral gigante. O trabalho desenvolvido por nós é uma forma de pensar o futuro, porque você não precisa ter uma relação para o mundo todo, você precisa ter uma solução para o seu território. Um lugar em que você vai ensinar um saber que já faz parte [da vida local] há mais de cem anos, como é o caso da cerâmica no bairro do Paracuri. Possibilitar uma vida digna para as pessoas que moram lá e saudar os seus ancestrais”, completa Maynara.
Guilherme acredita nesse encontro de gerações que se une na arte cerâmica como uma bênção de Deus. “Nós temos uma relação muito próxima. Ela traz a visão dela sobre o trabalho que nós fazemos aqui e junto com as minhas ideias, acho que a gente consegue uma coisa bem legal. Envolve muito afeto, são coisas muito gratificantes, porque tenho a oportunidade de ter minha filha todo os dias aqui”, diz o ceramista, que apoiou Maynara quando ela quis seguir outros caminhos e depois quando voltou ao negócio da família. “Eu aprendo muito com ela sobre valores de vida, sobre empatia, justiça, ela é uma filha muito especial. Além do amor de pai, eu tenho uma grande admiração pela pessoa que ela se tornou, tenho muito orgulho dela. Isso se reflete muito no nosso dia de trabalho aqui”, derrete-se.
Um infinito de canções, memórias e amor
Foi pensando no legado deixado pelo pai que a artista visual Carol Abreu propôs “reviver um ritual” que já era feito pelo seu pai e seus amigos, da circulação de um acervo de vinis que hoje está na prateleira da instalação “Studio Som Jolie: Replay”, aberta desde quinta-feira na Galeria Ruy Meira, da Casa das Artes, onde permanece para visitação até 28 de setembro. A proposta agora é manter viva essa coleção e memória de Aldemário Abreu, pai da artista, que faleceu em 2020, vítima da covid-19.
“Acredito que compartilhar histórias de vida pode ser importante. Somos feitos de pessoas, de narrativas que nos atravessam. A gente se identifica com as experiências dos outros quando escutamos o mundo. E é desta forma que mantenho a vida do meu pai viva, não só para mim, como para o mundo. Disponibilizar o acervo para o mundo faz parte da forma de vida do meu pai. Ele adorava criar playlists personalizadas para os amigos, familiares”, conta Carol, que cada vez que entra no estúdio sente que é um encontro com o pai, pois era lá que ele passava a maior parte do tempo, ouvindo suas músicas, cantando, tomando sua cervejinha.
“Eu encontro com ele neste lugar. Parece que a gente se comunica por meio das canções. Até hoje ele me apresenta um universo infinito de canções. Em cada fragmento do estúdio, eu tenho memórias, ou chego até fabular histórias que eu não vivi”, diz Carol.
A proposta da exposição surgiu a partir de uma inquietação da Carol a respeito da conservação dos vinis do pai, pois percebeu que toda vez que fazia a higienização dos discos, encontrava capas em que havia assinaturas de outras pessoas, inclusive textos, datas. Durante esse processo, alguns amigos de seu Aldemário apareceram na casa da artista atrás de discos que haviam trocado com o pai dela.
“Com isso, percebi que eu poderia reviver um ritual que já era praticado entre meu pai e seus amigos, no caso, fazer a circulação desses discos. Na exposição passada, em 2022, havia uma obra que se chamava ‘Esta é uma gravação que vai ficar para a posteridade’, algo que meu pai sempre falava ao final de algumas gravações pessoais que encontrei. Daí surge a proposta de trocar os vinis por histórias, por vozes, por outras narrativas. Não há nada de novo nesta proposta, mas quero celebrar os rituais, o coletivo, a memória, não só do meu pai, mas como também de diversas vidas”, declara Carol, que guarda com carinho as principais lembranças com o pai, uma delas a musical.
“A memória é indomável, mas não posso negar que meu pai me remete profundamente à cena musical, Mutantes, Novos Baianos. Cresci ouvindo os Beatles, é uma das maiores lembranças que tenho. A prateleira de fitas K7 e de vinis é muito simbólica também. A vontade que tenho é de ouvir todas as músicas que ele ouviu daquelas prateleiras. Meu pai foi um homem muito simples, foi flexível na educação, mas exigente no gosto musical. Era colecionador, um arquivista amador de músicas, que é uma das minhas maiores referências. Hoje eu tenho uma playlist só com as músicas que me remetem a ele”, revela.
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