O rei Charles 3º não teve sorte em suas primeiras viagens internacionais desde que assumiu o trono do Reino Unido. Ambas foram marcadas pela onda de reivindicações sociais que vem tomando as ruas da Europa e que promete ganhar força também entre os britânicos.
O primeiro destino do monarca deveria ter sido Paris, mas a visita foi cancelada às pressas depois da escalada de conflitos nos protestos contra a reforma da Previdência de Emmanuel Macron. Na véspera da chegada de Charles à França, os atos tiveram forte presença de estudantes e de black blocs, sem contar o já tradicional mar de sindicalistas, e deixaram um rastro de fuligem e de destruição na capital francesa.
Na última quarta (29), Charles e a rainha-consorte, Camilla, foram então para Berlim, na Alemanha, dois dias depois de uma greve geral de trabalhadores dos transportes por aumento de salários frente à alta da inflação. A paralisação tumultuou o dia dos alemães e envolveu transporte aéreo, terrestre e ferroviário.
O próprio Reino Unido enfrentou a maior greve da história de seu sistema de saúde, o NHS. No total, cerca de meio milhão de trabalhadores entraram em greve nos últimos meses. Além disso, a Itália também teve que lidar com uma greve nacional que fechou os postos de gasolina do país em janeiro.
São as quatro maiores economias da Europa, o que diz muito sobre a atual situação do continente. Soma-se à quadra Portugal, que vem enfrentando paralisações de professores, de oficiais de Justiça e de trabalhadores do setor de transportes.
"Os vários movimentos europeus por melhores condições de trabalho olham uns para os outros, o que gera um processo de mimetização e de disseminação pelo contexto comum contra o qual se colocam". afirma Bruno Palier, diretor de pesquisas do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Science Po), sobre as razões desse cenário de Europa em ebulição.
Para ele, os países desenvolvidos compartilham uma crise e uma revolução no campo do trabalho que se explica, entre outros fatores, pelo contexto de informatização, competição internacional e gerenciamento vertical de corporações, em detrimento das classes médias e menos qualificadas.
"A alta do desemprego e as mudanças no regime de trabalho trazidas pela pandemia da Covid-19 fizeram os trabalhadores se mobilizarem nesses países", diz o cientista político. "Essa é uma revolução que foi silenciosa nos últimos 20 anos, mas que agora não quer mais se calar."
Outras peças no tabuleiro fazem deste momento uma tempestade perfeita. A inflação de 1% ao mês, antes impensável para a Europa, já é realidade mesmo em países notórios por sua estabilidade, como a Suécia. "A inflação não era tão alta aqui desde o final da década de 1980", avalia Annika Alexius, professora do departamento de Economia Nacional da Universidade de Estocolmo.
Se, por um lado, a alta da inflação atua como incentivo para trabalhadores tomarem as ruas por melhores condições e salários, o efeito das paralisações provoca estragos em vários setores da economia. Na França, entidades do setor hoteleiro de Paris acusam o cancelamento de 20% de suas reservas para o mês de abril por conta da turbulência social. O setor de transporte aéreo também sofreu com os distúrbios.
O diretor-executivo da EasyJet, Johan Lundgren, disse na última semana que a empresa tem sido "duramente atingida" pelos cancelamentos de voos nos principais aeroportos da França, e a Ryanair precisou acionar a Comissão Europeia para que se instituam regras mínimas de serviço durante as greves.
Outro ponto inescapável para entender o cenário de instabilidade é a Guerra da Ucrânia, que adicionou toneladas à carga do custo energético dos europeus. Situações beirando o absurdo, como a do sorveteiro italiano que recebeu uma conta de luz de R$ 27 mil, tornaram-se relativamente comuns no continente. Na virada do ano, o funcionário de um mercado beneficente para pessoas em situação de risco econômico disse que alguns dos frequentadores estavam usando velas para esquentar comida.
Na Alemanha, a greve foi um momento raro porque unificou duas grandes centrais sindicais, a EVG e a Ver.di, e desencadeou protestos nacionais num país acostumado a mobilizações circunscritas e à busca de consensos por meio de negociações. Essa cultura parece estar em rápida transformação e, desde o início do ano, os alemães viram greves se multiplicarem em escolas, hospitais e serviços postais.
Nesse contexto, a Federação Aeroportuária Alemã (DAV) denunciou uma estratégia de "greves crescentes no modelo da França", ao que o presidente do Ver.di, Frank Werneke, respondeu: "Um conflito social que não tem repercussões é um conflito social inofensivo".
A citação à França, é claro, não é por acaso. Os franceses são conhecidos mundialmente tanto pelas baguetes como pelos protestos populares. Na Inglaterra, para ironizar o outro lado do Canal da Mancha, os britânicos costumam perguntar: "Qual é mesmo a greve da semana na França?".
A própria palavra "greve" foi emprestada da antiga Place de Grève, hoje uma praça de concreto às margens do rio Sena renomeada para Place de l'Hôtel-de-Ville. Mas era ali que, após a Revolução Francesa, grupos de operários e desempregados costumavam se reunir para reivindicar melhores condições de trabalho.
Quase 250 anos depois, os franceses continuam a inspirar o mundo e o Reino Unido quando o assunto é ir às ruas. Nas últimas semanas, a hashtag #BeMoreFrench ("seja mais francês", em inglês) tem sido usada nas discussões sobre a suposta apatia britânica diante da deterioração dos serviços públicos, dos salários e da inflação.
Os britânicos evocam não só a resistência e a fúria que alguns franceses têm demonstrado nos protestos, como também o fato de não perderem a pose mesmo diante de adversidades como pilhas de lixo incendiadas ou forte repressão policial.
Entre as imagens mais compartilhadas sob a hashtag estão vídeos em que uma multidão empurra uma barreira de policiais em Paris, a foto de um homem nos protestos de Rennes que fuma seu cigarro imerso em brumas de gás lacrimogêneo e o vídeo de um casal que toma seu vinho num bar em Bordeaux com uma fogueira feita por manifestantes queimando ao fundo.
Um editorial do diário britânico The Telegraph consagrou a expressão na semana passada ao escrever que, quando o assunto é protesto, a população do Reino Unido é "britânica demais" e que "quando se trata de aposentadoria pública, nós deveríamos todos ser mais franceses".
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